A Queda do homem (Gênesis 3.1-8) deformou (destruiu?) a imago Dei, isto é, a imagem de Deus em
nós. Desde o Éden, o homem tornou-se um ser em ininterrupto conflito: Contra
Deus (porque o pecado é uma declaração de guerra a Deus), contra o próximo, a
começar pelo homicídio familiar de Caim para com Abel (Gênesis 4.1-7), e na
realidade consigo mesmo, estamos diariamente em uma crise existencial,
sintetizado na famosa expressão teatral-filosófica “ser ou não ser: eis a
questão” (Hamlet- William Shakespeare). O Reverendo Hernandes Dias Lopes disse
que o “homem é uma guerra civil ambulante”, a Queda, expressão do rompimento do
homem para com Deus, desencadeou simultaneamente o processo de rompimento
social humanitário. O Filósofo Platão (IV a.C) insistiu na dicotomia do homem,
isto é, alma x corpo. Para este, a alma estava aprisionada no corpo, lutando
desesperadamente por liberta-se. O mundo em si era dicotômico, a realidade
imanente era uma oposição da transcendente. De fato, a dicotomia do mundo é
latente. Na esfera social, a história registra conflitos entre brancos e
negros, ricos e pobres, senhores e escravos (e nisso, somente, concordaria, em
certa medida, guardada todas as proporções, com Karl Marx de uma “luta de
classes” histórica), na esfera política se percebem a dicotomia entre direita
(conservadora e/ou liberal) e a esquerda (essencialmente revolucionária). E
infelizmente, nos meandros eclesiásticos, as dicotomias, tricotomias e fragmentações
diversificadas também se evidenciam.
Aos que às vezes lamentam falando a respeito de um tempo
“em que os irmãos eram mais unidos” em detrimento dos dias hodiernos, tal
prerrogativa é equívoca! Nos dias primeiros da Igreja cristã (primitiva), as fragmentações
já se notabilizavam. A Igreja de Corinto é prova clara disso. Na sua epístola
aos Coríntios, especialmente, nos capítulos I e III, Paulo trata de uma divisão
existente que ameaçava a unidade da irmandade cristã. Partidarismos se formavam
a ponto de uns afirmarem ser “de Paulo, outros de Apolo e outros de Cefas” (I
Coríntios 1.11-12). No decorrer da História da Igreja não foi diferente. Nos
idos do século II temos os apostólicos de um lado e os agnósticos do outro, no
século III e IV o sério conflito entre arianos e nicenos. Temos o Cisma da
Igreja Católica, entre romanos e ortodoxos, no século XI. No século XVI a
Reforma Protestante introduzida por homens como John Huss (1369-1415) e Jerônimo
Savonarola (1452-1498) e eclodida por Martinho Lutero (1483-1546), racharam
definitivamente a cristandade e introduziu um tempo novo para a história
eclesiástica. As fragmentações ainda se intensificariam mais dentro do
protestantismo. Surgiria a divisão entre calvinistas e arminianos, tradicionais
e pentecostais, pentecostais e neopentecostais, sem contar as inúmeras
dissidências de dentro do protestantismo que deram vida a novas expressões de
fé e grupos religiosos.
Esse alvoroço todo retomou os dias da Igreja de Corinto,
certamente, ainda mais agravante. O que assistimos hoje nas mídias televisivas
e redes sociais é uma guerra religiosa interdenominacional indescritível.
Muitos ditos cristãos têm se reduzido a estereótipos teológicos e
denominacionais. Preferem identificarem-se como luteranos, calvinistas,
anglicanos, pentecostais, etc., etc., evocando os coríntios que se
identificavam como sendo de “Paulo, Apolo, Cefas, etc.” Não estou propondo,
negarmos nossas raízes históricas- confessionais. Eu mesmo, por exemplo, assumo-me
como pentecostal clássico. Foi dentro de uma denominação desse movimento que
Cristo me chamou a graça, me salvou por seu amor incondicional, me deu a
alegria de receber o Batismo no Espírito Santo (com a evidência inicial do
“falar em outras línguas”, conforme Atos 2.1-4; Atos 10.46; Atos 19.6) e me
designou para o ministério como ministro de sua palavra. Os conhecimentos
objetivos das Escrituras somados à experiência subjetiva dos mistérios da fé
que tenho vivido nesses anos foram dentro do contexto pentecostal clássico,
onde me encontro, de onde falo, aqui é minha casa. Mas, sobretudo, ou mesmo,
antes de tudo, sou cristão. É, aliás, a designação bíblica que os seguidores de
Jesus, de fato, receberam, Lucas narra que “Em Antioquia, foram os discípulos,
pela primeira vez, chamados cristãos” (Atos 11.26). Quando me assumo um
pentecostal clássico, apenas digo que essa é a perspectiva teológica-
hermenêutica de minha compreensão/confissão de fé. Mas minha vocação é ser
cristão. Quando Jesus chamou os Doze (Mateus 10.1-40), chama-os para serem
“seus discípulos”. O pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer (1906-1945),
deixou-nos, antes do martírio, um livro excepcional chamado Discipulado (1937), certamente, a melhor
obra sobre a temática que conheço, onde o autor nos leva a compreensão do
genuíno chamado de Cristo a nós. Ser cristão e discípulo são a mesma coisa,
aliás, só podemos ser alcunhados de cristãos pelo fato de termos sido matriculados
no discipulado com Cristo. Os discípulos foram chamados para segui-lo, imitá-lo
e dar continuidade às obras de Cristo (João 14.12/ Marcos 16.15), inclusive,
“fazer discípulos” (Mateus 28.19) foi uma das últimas ordens expressas de nosso
Senhor. Jesus não disse: “Sereis luteranos”, “sereis calvinistas”, “será
arminiano”, “será pentecostal”, sua proposta era unilateral “sereis meus
discípulos” (João 15.8) e nisto “O pai seria glorificado”, pois, os discípulos
frutificam.
O problema latente dos estereótipos é que eles guardam em
si, posições extremistas que desembocam na segregação e fragmentação, no caso
eclesiástico, do corpo de Cristo. Irmãos têm se digladiado em nome de teólogos
e interpretes da fé, de sistemas teológicos e de denominações. Deveríamos
deixar (vez em quando) os intérpretes (interpretes são falíveis) da Palavra de
lado, pois muitos os têm como autoridades infalíveis (tipos de papas
protestantes) e voltarmos à pureza da Palavra (sola scriptura). E o que esta Palavra
diz a nós, cristãos, discípulos do Mestre é que “Nisto todos conhecerão que
sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (João 13.35).
Discordâncias, perspectivas diferentes, ânimos aquecidos sempre haverá, mesmo
Paulo e Barnabé, homens maduros e referenciais tiveram uma contenda a ponto de separam-se
momentaneamente por situações em que discordaram (Atos 15.37-39). Paulo e
Pedro, apóstolos modelares, de igual modo estranharam-se e “resistiram-se”
(Gálatas 2.11-15). Mas mesmo em meio às discordâncias, renderam-se a “unidade
do Espírito” (Efésios 4.3). É tempo de
fugirmos de estereótipos que nos separam e nos encontramos em Cristo que nos
une “em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres” (I
Coríntios 12.13).